Bloquear no presencial? Juventudes e desafios atuais

19/12/2022

Tanto a criatividade, como a fluidez de jovens e adolescentes no ambiente virtual, foi mobilizada de forma mais engajada para a manutenção e criação de vínculos via jogos virtuais e redes sociais, durante o distanciamento social, necessário para controle da pandemia. Mesmo com estes esforços para reduzir o impacto do isolamento, o retorno à presencialidade, apresentou seus gaps. Situações conflituosas, no contato físico com o outro, em alguns casos, impactaram as condições de saúde mental da comunidade escolar.  

Quem nunca se deparou com situações de estresse, divergências de opiniões, pensamentos opostos, no modo virtual e com a possibilidade de utilizar a função “bloquear contato”, “sair de grupos de amigos e familiares”, ao se cansar de certos conflitos? O uso dessas possibilidades facilita a criação de “bolhas”, onde só se cultiva ideias semelhantes às próprias. Se entre adultos isso foi observável, entre jovens e adolescentes, algumas estratégias similares também foram acionadas, com outras intensidades, modeladas pelos contextos sociais. Estes elementos compõem o que pesquisadoras, que trabalham com as juventudes, já identificavam como as alterações no modo de conduzir a vida, anunciado como a “cultura digital” (SALES, FERREIRA e VARGAS, 2015). Não iremos detalhá-la aqui, pois nos interessa compartilhar algumas impressões do retorno à presencialidade para considerável expressão das juventudes e o papel da escola para o desenvolvimento socioemocional dos estudantes. 

Ao interagirmos com o outro, na presencialidade física, há uma série de pistas, sinais, elementos reveladores do seu estado, que nos permitem uma leitura mais integral da sua condição humana. Embora, os avanços tecnológicos, criados em nosso tempo, viabilizem condições para conexões, extremamente acuradas, possibilitando encontros por meio de ambientes virtuais, ainda não conseguimos estabelecer, neste formato, essa leitura mais sensível sobre o outro e acumulam falhas na comunicação. Estas falhas, comuns em qualquer comunicação, pode ser intensificadas e fragilizar ainda mais as relações estabelecidas, afetando nossas condições socioemocionais.  

Em pesquisa recente, o Datafolha divulgou o cenário da saúde mental entre nossos jovens, o estudo captou que: “8 em cada 10 jovens tiveram problemas recentes de saúde mental” (2022). Destacando um espectro que varia entre sintomas de pensamentos negativos, dificuldades de concentração, ansiedade, até pensamentos suicidas afetando à saúde de brasileiros de 15 a 29 anos; onde as mulheres são mais atingidas do que a média nacional. Ao nos encontrarmos em condições de abalo da saúde mental, teremos mais dificuldades de nos colocarmos em relação com as demais pessoas do nosso entorno. 

Acreditamos que parte das dificuldades nos relacionamentos entre as pessoas passam por situações da não habilidade da escuta. Pensando junto a Rubem Alves, compreendemos que a “nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade[…]” (2012), que precisaria ser trabalhada e transformada. Escutar o outro, como diria Dunker (2020), demanda trabalho e dedicação, é quase uma arte laboriosa. A escuta exige tempo e presença, vontade de estar com o outro. Entendemos que o exercício de alteridade empática, de se colocar no lugar do outro, buscando compreender situações conflituosas como possibilidades geradoras de aprendizagens, com o potencial para resoluções reais de problemas comuns, é uma competência extremamente complexa a ser desenvolvida.  

No retorno à presencialidade, nas escolas, a irritabilidade, a falta de paciência, o medo, a insegurança, ansiedade foram sensações de destaque dentro e fora das salas de aula. Ao ter ideias diferentes de seus colegas, estudantes parecem sentir a falta de elementos constituídos pela convivência presencial para discutir, refletir, escutar e estabelecer as relações de respeito e amizades, experimentando os vínculos humanos em suas diversas configurações. É preciso observar as situações de conflito e tirar o que melhor podemos aproveitar em processos de aprendizagens.  

O ambiente escolar é, primordialmente, um espaço onde a convivência com o não familiar, construído nas relações com colegas e educadores, potencializa e promove desenvolvimento e saúde de crianças e adolescentes: nas relações que não são pautadas necessariamente pelo vínculo afetivo e familiar, é possível a compreensão das condições de se viver, regras e combinados sociais, que constituem a vivência da cidadania; é nessa convivência com um outro diferente que se fortalece a troca de experiências com pares e adultos na constituição e desenvolvimento subjetivo singular. Nesse sentido, destaca-se o papel do adulto – dos educadores – fora do âmbito familiar que potencializa a inserção da criança na esfera pública (MOSCHEN; SOUTO, 2020). 

Desse modo, frisamos a importância da escola como local potencializador do encontro com o outro e da diferença. Na escola temos uma rica oportunidade de praticar e desenvolver habilidades para uma escuta ativa, de nos embalar na musicalidade elaborada no contato com o outro, numa composição dialógica de silêncio, palavra, fazendo melodia. Movimentações que lapidam emoções e auxiliam no desenvolvimento de relações mais cooperativas, para o psicólogo Filip Fruyt, desenvolver habilidades colaborativas “ajudam a criar laços fortes e a trabalhar em equipe, algo essencial para que a pessoa tenha apoio social”, além de fortalecer: “comportamento cidadão e responsabilidade diante de sua família, de seu grupo ou da sociedade em geral” (2016).  

As diversas gerações de estudantes compõem multiplicidades, onde alguns são conhecidos como nativos digitais1 (PRENSKY, 2001, apud PESCADOR, 2010) – os que, de forma cultural por meio se seus comportamentos, demonstram mobilizar a tecnologia digital como uma linguagem – outros nem tanto. Fenômenos desse tipo são explicados desde teóricos como Juarez Dayrell (2003) que, apoiado em outros pesquisadores e pesquisadoras, nos auxilia a compreender a pluralidade das juventudes, constituídas a partir de “transformações do indivíduo numa determina da faixa etária”, o que completa o seu desenvolvimento físico, mas entendendo, também, que este individuo enfrenta mudanças psicológicas, de forma variada considerando os contextos sociais-econômicos, culturais (étnico-raciais, identidades religiosas, valores, gênero, afetividades), tempo histórico, espaço geográfico, etc. E, é justamente estas múltiplas culturas que se encontram em sala de aula propiciando condições para o acontecimento que a educadora bell hooks2 chamaria de “pedagogia transformadora”, por meio da instituição de uma “comunidade para criar um clima de abertura e rigor intelectual” (2017, p.57), por meio de relações de compromisso ao se partilhar um bem comum. 

Por fim, não poderíamos deixar de mencionar, ao contrário do que muitas vezes é compreendido, o grande desafio para a educação não se restringe a aspectos cognitivos. Especialista do mundo inteiro identificaram perdas no processo de aprendizagem, agravadas pelo evento pandêmico. Nosso entendimento é de que a defasagem na educação, não se trata de perder informações, por exemplo, sobre a organização da sociedade egípcia, mas sim, de não ter tido a oportunidade de compreender e discutir formas de conviver, pensar e agir de sociedades distintas, para ampliar nosso repertório de possibilidades, de combinações a fim de constituir pensamentos mobilizadores que considerem o outro e suas potencialidades.  

Retomamos a pergunta inicial deste artigo “como se ‘bloqueia’ no presencial?”, para dizer que: um trabalho fundamentado em questões socioemocionais, nos auxilia a ampliar horizontes onde bloquear o outro não seja a estratégia desejada no presencial e nem no virtual. A convivência e os conflitos são elementos necessários às aprendizagens, porque estabelecem condições para que junto ao diferente do eu, haja tempo e espaço para o reconhecimento e valorização desse outro, para o exercício da alteridade empática e abertura para possibilidades de transformações de conflitos buscando formas criativas de conviver e resolver problemas sem acionar a opção de bloqueio. 

 

Autoras: Patrícia Pereira, professora e coordenadora da área de Ciências da Natureza no SESI/RS e Lívia Zanini, psicóloga Analista Técnica especializada da Gerência de Saúde Mental do SESI. Atualmente, fazem parte da equipe do programa Gestão e Formação Educacional do SESI RS.

 

Referências:  

ALVES, Rubem. As melhores crônicas de Rubem Alves. 4ªed. Campinas, SP: Papirus. 2012. 

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação. Set /Out /Nov /Dez. Nº 24. 2003. Pp. 40-52.  

DUNKER, Christian.  O Trabalho Político da Escuta. 2020. DUNKER, C.  IN: Paixão da Ignorância: a Escuta Entre a Psicanálise e Educação. Editora Contracorrente, 2020.   

FRUYT, Filip de. Entrevista Lapidando Emoções. Neuroeducação. Psicologia. Pedagogia. FIESC. Instituto Ayrton Senna. Nº7. 2016. p.12-15 

HOOKS, bell. Abraçar a mudança: o ensino num mundo multicultural. IN: Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. bell hooks. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2017.  

MENA, Fernanda. 8 em cada 10 jovens tiveram problemas recentes de saúde mental. Datafolha. Folha de São Paulo. 17.out.2022 às 19h24. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2022/10/8-a-cada-10-jovens-tiveram-problemas-recentes-de-saude-mental-aponta-datafolha.shtml 

PESCADO, Cristina. Tecnologias digitais e ações de aprendizagem dos nativos digitais.  Congresso Internacional de Filosofia e Educação. Maio 2010 Caxias do Sul. 2010.  

SALES, Shirlei; FERREIRA, Aline e VARGAS, Francielle. Juventude EMdiálogo: tecnologias digitais na extensão universitária. Revista Conexao UEPG. Ponta Grossa, volume 11, Nº2 – mai./ago. 2015 

p.182-193 

SOUTO, Luís Adriano Salles; MOSCHEN, Simone. Desescolarizar a educação? IN: DANZIATO, Leonardo; POLI, Maria Cristina; COSTA-MOURA, Fernanda (Orgs.). Cisões e paradoxos na política brasileira: efeitos para o sujeito. 1ª edição. Curitiba: Appris, 2020. pp 137-152.

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